Há muitos anos que os cães são parceiros dos homens em diversas funções, e de acordo com a necessidade, intencionalmente ou ao acaso, surgiram raças com aptidões físicas e mentais específicas a cada trabalho.
Atualmente, a progressiva diminuição do contato que os criadores têm com o trabalho original das raças dificulta o estabelecimento de critérios objetivos, favorecendo o surgimento de polêmicas repletas de subjetividades, totalmente nocivas ao melhoramento genético de uma raça de trabalho. Uma raça de trabalho deve ter sua criação pautada em critérios objetivos, para que não perca o seu propósito inicial.
O que realmente é importante em um cão de trabalho, a estrutura física ou o temperamento? Estas características são genéticas ou ambientais? Como conduzir a criação de uma raça de trabalho? Estas questões são cada vez mais presentes, e é cada vez maior o número de opiniões e posturas sem fundamento.
01) Estrutura X Temperamento:
Quando se trata de uma raça para o trabalho, o que interessa na verdade é o desempenho funcional. Um animal com falhas anatômicas, pouca musculatura, angulações inadequadas, ossatura frágil e outros problemas, terá sem dúvida nenhuma sua capacidade de trabalho limitada. De outro lado, um animal “fraco de nervos”, com baixos impulsos, e pouca dureza, mesmo possuindo uma estrutura atlética, nunca terá desempenho. Portanto os dois são importantes, um é suporte para o outro. A seleção de uma raça de trabalho não pode ser feita estritamente com base no temperamento, e muito menos pela estrutura ou estética, deve sim ser fundamentada no desempenho dos indivíduos em trabalho.
02) Genética X Ambiente:
Para nortear nosso raciocínio, é útil conhecermos o significado do termo HERDABILIDADE. Em genética e melhoramento animal, herdabilidade é o nome que se dá a fração de uma característica que é herdada, o quanto é realmente genético. A herdabilidade pode variar de 0 a 1, e quanto mais próxima de 1, mais herdável é esta característica, ou seja, mais importante é o fator genético para sua manifestação.
É fácil de se perceber que características estéticas ou visuais, de uma forma geral, possuem uma alta herdabilidade, como por exemplo a cor “Black na Tan”do Rottweiler, que muito pouco é influenciada por aspectos ambientais.
Em contrapartida, problemas como a displasia coxofemoral, que possuem origem comprovadamente genética, se desenvolvem em associação a fatores ambientais relevantes, como nutrição e manejo.
A grande questão é o temperamento. Algumas correntes da psicologia defendem o ambiente como fator principal de construção do comportamento, praticamente desprezando aspectos genéticos. Nossa experiência prática aliada à opiniões de treinadores de ponta no mundo e importantes centros de criação de cães de serviço não nos deixa concordar com isto. A genética exerce um papel importantíssimo na manifestação comportamental. Acreditamos que genética e ambiente se interagem constantemente na formação do indivíduo. Sem boa genética não há alto desempenho, por melhor que seja o ambiente e a técnica de treinamento.
03) Seleção e Criação:
A criação talvez seja a tarefa mais complicada do universo do cão de trabalho. É muito difícil de se avaliar o temperamento, como já vimos, trata-se de uma herança com inumeráveis genes e combinações, e, fortemente influenciada pelo ambiente. Não há a possibilidade de se “ver” o temperamento de um cão em uma exposição de estrutura ou beleza. A forma mais prática e mais aconselhável de se selecionar cães de trabalho é a avaliação de seu desempenho final em trabalho.
Hoje, por circunstâncias de época, em muitos casos talvez estejamos distantes das funções originais dos cães, e as competições esportivas são grandes aliadas da criação; podemos utilizar provas como o VPG (Schutzhund), Ringsport, pastoreio, caça, detecção etc., de acordo com a finalidade da raça.
Temos subsídios lógicos para afirmar que um bom reprodutor de trabalho deverá possuir filhos com alto desempenho em trabalho, e, se uma raça de trabalho estiver com a sua criação sendo corretamente conduzida, cães desta raça inevitavelmente terão bons resultados em serviços de competições afins. Devemos usar as provas de trabalho específicas à cada função como um aferidor de como está sendo conduzida a criação de determinada raça. Para que haja seleção e melhoramento genético da criação é necessário observarmos outro conceito técnico, o da “pressão seletiva”. Para melhor entendermos, podemos usar uma ferramenta chamada “curva de distribuição normal de uma população” ou “curva de Gauss” :
Este é um gráfico clássico de estatística de populações. Na reta “x” utilizamos uma variável hipotética: o desempenho dos indivíduos.
Neste gráfico podemos notar que o maior número de indivíduos se situa na média de desempenho ou em torno dela (“M”). Observamos também que o número de indivíduos com maior desempenho é reduzido (área hachurada da direita) , assim como o numero de indivíduos de baixo desempenho (área hachurada da esquerda).
A “pressão seletiva” consiste em se estabelecer um padrão mínimo (neste caso um desempenho mínimo aceitável), excluir os indivíduos com desempenho abaixo deste padrão (a esquerda do ponto de corte estabelecido), e utilizar na reprodução os indivíduos situados a direita do padrão mínimo estabelecido. Exercemos desta forma uma “pressão” para que esta curva se desloque para a direita, conseguindo desta forma um melhoramento genético da população.
No primeiro instante teremos uma redução drástica no número de indivíduos da população, mas quando o numero de indivíduos for restabelecido, possuiremos uma mesma população em número, porém com maior média de desempenho:
Toda população que acasala aleatoriamente entre si, ou seja, indivíduos situados em qualquer posição na curva reproduzindo-se indiscriminadamente, tende a tornar sua curva de freqüência gênica estável, sem se deslocar. Portanto, sem pressão seletiva não há melhoramento genético.
04) Conclusões:
O melhoramento animal nos apresenta um vasto campo de discussões. Não temos como objetivo determinar um padrão de criação, mesmo porque nem abordamos aspectos como displasia coxofemoral, displasia de cotovelo, hemofilia, e outras patologias de cunho genético. A idéia é compreendermos as bases científicas do melhoramento, para obtermos sucesso maior nesta frustrante incursão de criar cães para trabalho.
Devemos estabelecer critérios rígidos de escolha dos reprodutores e matrizes, sempre baseados no desempenho. É imprescindível que utilizemos a melhor técnica de treinamento para que os animais expressem ao máximo seu potencial genético e nos forneçam uma correta avaliação de sua capacidade de trabalho.
Para alcançar nossos propósitos sem naufragar, todos os segmentos envolvidos na criação devem ser competentes em sua função e em sintonia com um objetivo comum. Os juízes de provas precisam ser treinadores e competidores atualizados e atuantes; os treinadores devem aprimorar incessantemente sua técnica; os figurantes de prova devem ser honestos e conscientes da importância do seu papel, e, os criadores devem ser assessorados de perto pelos anteriores.
Finalizando, não nasce laranja em coqueiro, e não conseguiremos desenvolver uma raça de trabalho se esta for selecionada pela estética. A única maneira de se conduzir a criação de uma raça de trabalho é através do desempenho de seus indivíduos em trabalho. Uma raça só pode ser considerada raça de trabalho se houver um critério geral de seleção em trabalho, e se, uma proporção considerável dos indivíduos desta raça é submetida com sucesso ao trabalho proposto.